O Pintor Debaixo do Lava-Loiças - Afonso Cruz
Depois de aceitar que ia quebrar a promessa de não comprar mais livros este ano, fui até à feira do livro da Figueira da Foz (tradição familiar é desculpável) e trouxe para casa alguns livrinhos – só de autores portugueses (chama-se atenuação da transgressão).
Quando estava na caixa a pagar, a senhora disse-me “Sabia que essa história aconteceu aqui? O Afonso é da Figueira da Foz! O lava-loiças é na Figueira da Foz!” e então passados uns dias, uma pessoa não aguentava não saber o que é que realmente se passou na Figueira da Foz e pegou no livro novo enquanto os que estão na estante há dois anos passaram para segundo plano, outra vez.
A minha história com Afonso Cruz está cheia de altos e baixos, e por isso, quando começo um livro dele vou meio no medo, meio na fé. Desta vez, acertou em cheio.
Assim muito resumidamente, o autor vem contar-nos a história, baseada em factos reais, da vida de Jozef Sors, um pintor eslovaco que nasceu a 23 de novembro de 1895, que passou por alguns países, até que eventualmente chegou à Figueira da Foz, em 1940, como refugiado judeu durante a Segunda Guerra Mundial.
Podia ser um livro muito simples sobre a vida de um homem, mas o Afonso decidiu escrever o maior conjunto de metáforas extraordinariamente lindas e condensá-lo em 172 páginas 90% citáveis e, portanto, para não copiar para aqui o livro todo, seguem-se algumas passagens, de forma MUITO contida.
“Os melhores beijos são invisíveis, são como um pintor debaixo do lava-loiças. É por isso que os namorados se escondem do mundo e fecham os olhos. Não há testemunhas e é por isso, por essa invisibilidade toda, que os beijos apaixonados são tão poderosos. Sors pensava que a Lua só existia porque havia pessoas apaixonadas. Ela não faria sentido algum num mundo sem paixão. Nem a Lua, nem as flores, nem os bombons.”
“O caminho a direito é solitário e estéril. Sors sentia-se cada dia mais triste, cada dia mais só. A sua mãe reparava nisso e pensava: os artistas veem coisas novas nas coisas velhas. Coitados. Destroem tudo, todo o conforto, toda a paz. O meu pobre filho! Quem me dera ter dado à luz um advogado ou um médico. São muito mais felizes.”
“Foi nesse ano que começou a Grande Depressão. Mas não tão grande como a de Sors. Os primeiros anos nos Estados Unidos foram uma ilusão. O seu passado parecia ter ficado definitivamente para trás, mas o passado nunca fica para trás. Anda sempre connosco. Mais ainda, vai à nossa frente – o futuro só o vemos através desse passado.”
Vamos todos agradecer ao Afonso por este presente e quem não chorar no epílogo é um ovo podre (metaforicamente!!!!).