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mariana

27 de Outubro, 2023

Outono - Ali Smith

mariana

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“O que estás a ler?

Elisabeth mostrou-lhe as mãos vazias.

Parece-lhe que estou a ler alguma coisa?, disse ela.

Devemos estar sempre a ler alguma coisa, disse ele. Mesmo que não estejamos a ler fisicamente. Caso contrário, como seremos nós capazes de ler o mundo? Imagina o processo como uma constante.”

Esta amizade começa quando Elisabeth é uma criança e Daniel um octogenário, uma relação formativa para ela e que a acompanha até ao dia presente, quando anda pelos trintas e Daniel tem mais de 100 anos e está internado num Lar. É esta a história principal, muitos dos diálogos, momentos e memórias partilhados à medida do crescimento de Elisabeth.

Nas páginas iniciais tive a ideia de que este livro não ia ser para mim, pareceu-me uma daquelas escritas presunçosas que odeio. Felizmente, foram só as primeiras páginas e o choque inicial desvaneceu para dar lugar a um dos mais belos livros que já li.

Ali Smith brinda-nos com uma escrita experimental, não linear, rápida, onde passa de pensamentos de infância para o clima de tensão política dos dias de hoje (Brexit), onde descreve sonhos, insere citações de outros autores, letras de música, e consegue ligar tudo isto de uma forma harmoniosa e original – isto é discutível, para muitas pessoas é uma escrita confusa e caótica – o que não é discutível é a qualidade única e especial do seu traço.

“Temos de confiar, disse Daniel, que as pessoas que nos amam e nos conhecem minimamente bem nos tenham visto verdadeiramente. No fim, pouco mais importa”

“(…) ou devo dizer-lhe a verdade mais mundana?
Conte-lhe a mentira, sem dúvida, disse Elisabeth.

Mas pensa no que acontecerá caso o faça, disse Daniel.

Será fantástico, disse Elisabeth. Será verdadeiramente cómico.

Eu digo-te o que acontecerá, disse Daniel. Isto. Tu e eu saberemos que eu menti, mas a tua mãe não. Tu e eu saberemos uma coisa que a tua mãe desconhecerá. Isso fará com que nos sintamos diferentes não só na relação com a tua mãe, mas também na nossa. Uma cunha meter-se-á entre todos nós. Deixarás de confiar em mim, e com toda a razão, porque passarei a ser um mentiroso. Todos seremos enfraquecidos pela mentira. Dito isto. Continuas a optar pelo ballet? Ou conto a verdade menos excitante?

Eu quero mentir, disse Elisabeth.”

Uma nota para a tradução incrível de Manuel Alberto Vieira e para o tamanho de letra e margens da edição da Elsinore, com uma ligeira irritação por o texto não estar justificado !!!!

20 de Outubro, 2023

A Viagem do Elefante - José Saramago

mariana

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Acabei de ler este livro há alguns dias e precisei deste tempo para pensar no que ia dizer sobre ele, mais precisamente a preparar-me para falar mal de Saramago em público.

CALMA! A verdade é que como maior parte dos leitores, eu também sou uma grande fã do trabalho do Nobel, como não? Tão fã que estabeleci um limite de leitura de um romance anual, para não esgotar os recursos e saber que ainda me restam alguns anos de novas leituras.

Este ano decidi que ia ler “A Viagem do Elefante”. Para quem não sabe, o escritor andava por terras de Áustria, quando entrou num café e lhe contaram a história real que aconteceu no século XVI, quando o rei D. João III ofereceu ao seu primo, Maximiliano II, um elefante indiano que tinha em Lisboa. O elefante teve então de viajar milhares de km de Lisboa a Viena. Posto isto, o escritor decidiu escrever um conto (com mais de 200 pp), onde relata esta jornada.

Numa entrevista que o autor deu na altura de lançamento, ele diz-nos que o livro funciona como uma metáfora para a vida humana. “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” – na medida em que chegamos ao nosso destino depois de uma viagem e ao outro destino, o inevitável, aquele mesmo em que estão a pensar.

Isto porque *SPOILER SPOILER*, passado pouco tempo da chegada do elefante a Viena, o animal morre e cortam-lhe as patas para fazer aqueles objetos onde se metem guarda-chuvas e bengalas, que estão à entrada dos sítios (chapeleiro?).

Como já li alguns livros do autor, estou habituada a sequências de viagens, como acontece por exemplo em Caim, Levantado do Chão, Memorial do Convento, onde existem muitas descrições e também se levantam situações de crítica à sociedade. Neste caso, temos crítica ao poder hierárquico, ignorância do povo e à Igreja, entre outras… A questão é, este livro é *preparem-se* chato. Tem palavras a mais, tanto que demorei mais de 10 dias para ler 200 páginas. Não existe qualquer tipo de conflito, suspense, ou aprofundamento de personagens, são apenas longos parágrafos descritivos e acaba por não acrescentar nada de novo que os outros acima não tenham já dito, e melhor.

Eu sei, eu também fiquei triste. Mas olhem, melhores virão e há passagens muito bonitas na mesma. Aqui vão:

“(…) a quem talvez não vejamos mais, ou talvez sim, porque a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos não voltaríamos a encontrar-nos”

“Não é verdade que o céu seja indiferente às nossas preocupações e anseios. O céu está constantemente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizemos bons conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele e a nossa, já demonstrou que não vale a pena esforçar a memória, que todos a temos mais ou menos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estivermos de olho atento”

“No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas seletiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta da realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso” 

"Não se pode descrever. Realmente, o maior desrespeito à realidade, seja ela, a realidade, o que for que se poderá cometer quando nos dedicamos ao inútil trabalho de descrever uma paisagem, é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram nossas, repare-se, palavras que já correram milhões de páginas  e de bocas antes que chegasse a nossa vez de as utilizar,  palavras cansadas, exaustas de tanto passaram de mão em mão e deixarem em cada uma parte da sua substância vital"

Ah, e para além de tudo isto, o livro ainda inspirou uma jarra da Vista Alegre que custa 380€. Vou só deixar aqui esta informação, façam dela o que quiserem.

04 de Outubro, 2023

Autobiografia Não Autorizada - Dulce Maria Cardoso

mariana

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“Precisei de anos para perceber que estar desatenta é estar também desarmada, e que isso é mau. Precisei de décadas para perceber que estar desatenta é estar também desarmada, e que isso é bom.”

Foi este o parágrafo que me fez dobrar uma ponta de página ao fim de duas pequenas folhas desde o início do livro, batendo, assim, todos os recordes de dobrar páginas da minha vida.

Foi assim que percebi que ia ser uma daquelas leituras que se fazem devagar, devagarinho, para que dure o máximo de tempo possível – do género de amor de verão, que bate muito e acaba depressa.

A primeira palavra que me vem à cabeça quando penso neste livro é honestidade. A escritora abre as portas da sua vida de forma tão bonita, crua e corajosa, com desabafos que sabem a um abracinho aconchegante, que assumem a forma de “eu senti isto. eu sei que não é um sentimento racional, nem razoável, mas é o que é”, e que nos tranquilizam o coração.

O livro reúne crónicas sobre a vida amorosa da escritora, a sua infância, sobre a altura do COVID e, em geral, episódios aleatórios – alguns extraordinários, outros horríveis – que moldaram a forma como olha o mundo e que se foram passando nos seus quase 60 anos.

Estive a folhear para tentar escolher as minhas crónicas favoritas e pensei que seria uma tarefa impossível, mas seguem as favoritas mais favoritas:

- beijos, joelhos e desconhecidos (p. 43)

- o amigo genial (p. 47)

- mudar de vida (p. 93)

- a vida anormal (p. 117)

- setembro, setembro, setembro (p. 163)

- esperar (p. 199)

- um sítio sem linguagem nem ruas (p. 219)

Com o fim do ano a chegar, esta autobiografia não autorizada entra assim, sorrateiramente, no top 5 de 2023 e ACABEI DE DESCOBRIR QUE SAIU UMA SEQUELA EM SETEMBRO E É POR ISTO QUE EU AMO A TINTA-DA-CHINA