Outono - Ali Smith
“O que estás a ler?
Elisabeth mostrou-lhe as mãos vazias.
Parece-lhe que estou a ler alguma coisa?, disse ela.
Devemos estar sempre a ler alguma coisa, disse ele. Mesmo que não estejamos a ler fisicamente. Caso contrário, como seremos nós capazes de ler o mundo? Imagina o processo como uma constante.”
Esta amizade começa quando Elisabeth é uma criança e Daniel um octogenário, uma relação formativa para ela e que a acompanha até ao dia presente, quando anda pelos trintas e Daniel tem mais de 100 anos e está internado num Lar. É esta a história principal, muitos dos diálogos, momentos e memórias partilhados à medida do crescimento de Elisabeth.
Nas páginas iniciais tive a ideia de que este livro não ia ser para mim, pareceu-me uma daquelas escritas presunçosas que odeio. Felizmente, foram só as primeiras páginas e o choque inicial desvaneceu para dar lugar a um dos mais belos livros que já li.
Ali Smith brinda-nos com uma escrita experimental, não linear, rápida, onde passa de pensamentos de infância para o clima de tensão política dos dias de hoje (Brexit), onde descreve sonhos, insere citações de outros autores, letras de música, e consegue ligar tudo isto de uma forma harmoniosa e original – isto é discutível, para muitas pessoas é uma escrita confusa e caótica – o que não é discutível é a qualidade única e especial do seu traço.
“Temos de confiar, disse Daniel, que as pessoas que nos amam e nos conhecem minimamente bem nos tenham visto verdadeiramente. No fim, pouco mais importa”
“(…) ou devo dizer-lhe a verdade mais mundana?
Conte-lhe a mentira, sem dúvida, disse Elisabeth.Mas pensa no que acontecerá caso o faça, disse Daniel.
Será fantástico, disse Elisabeth. Será verdadeiramente cómico.
Eu digo-te o que acontecerá, disse Daniel. Isto. Tu e eu saberemos que eu menti, mas a tua mãe não. Tu e eu saberemos uma coisa que a tua mãe desconhecerá. Isso fará com que nos sintamos diferentes não só na relação com a tua mãe, mas também na nossa. Uma cunha meter-se-á entre todos nós. Deixarás de confiar em mim, e com toda a razão, porque passarei a ser um mentiroso. Todos seremos enfraquecidos pela mentira. Dito isto. Continuas a optar pelo ballet? Ou conto a verdade menos excitante?
Eu quero mentir, disse Elisabeth.”
Uma nota para a tradução incrível de Manuel Alberto Vieira e para o tamanho de letra e margens da edição da Elsinore, com uma ligeira irritação por o texto não estar justificado !!!!