Annie Ernaux em três atos
Nas últimas semanas de março e um tanto desinspirada de leituras (ainda), passei pela biblioteca para requisitar “O acontecimento” de Annie Ernaux, para o renascimento do meu bookclub preferido – o das minhas amigas. Quando o encontrei, estava junto de outros dois – “O jovem” e “Um lugar ao sol seguido de uma mulher”, e como já tinha ouvido falar bem deste último, resolvi trazer os três (inserir todas as expressões com o número 3: não há duas sem três, três foi a conta que Deus fez, à terceira é de vez, etc.).
Parei logo a seguir num café e sem querer li “O jovem” de uma assentada.
O JOVEM
Neste livro, Annie Ernaux fala-nos de uma relação que teve com um homem com metade da sua idade. Esta diferença acentua os estigmas sociais e as relações de poder, e, no meio de um enamoramento, dá-se um retorno ao passado e à juventude da própria autora, onde se compara a este jovem. Podem aqui ser encontrados temas como classe social, sexualidade, a passagem do tempo e a repetição dos relacionamentos.
UM LUGAR AO SOL SEGUIDO DE UMA MULHER
Quantos livros sobre relações parentais e a morte quero ler? Sim.
“Um lugar ao sol” (1984) e “Uma mulher” (1988), são duas peças literárias que Annie Ernaux escreveu sobre a vida e a morte do pai e da mãe, falecidos com poucos anos de diferença. Tanto num como noutro, existe um relato sobre as suas vidas como seres individuais, no trabalho e a ligação familiar que os unia.
Apesar do tema ser emocional, estes textos estão escritos de uma forma direta e não sentimentalista. Numa mistura entre literatura, sociologia e história, Annie pinta um retrato da sociedade francesa ao longo do século 20, e eterniza as histórias dos seus pais, pormenorizando as suas infâncias até ao casamento, os seus medos e obstáculos.
“Não voltarei a ouvir a sua voz. Era ela e as suas palavras, as suas mãos, os seus gestos, a sua maneira de rir e de caminhar que uniam a mulher que sou à criança que fui. Perdi o último laço com o mundo de que provim”.
O ACONTECIMENTO
Vendo-se grávida quando o aborto ainda era ilegal em França (deixou de o ser em 1975), a autora, na altura com 23 anos, embarca na procura de uma solução para resolver este problema. À semelhança dos outros livros, é de forma pragmática que Annie nos conta esta aventura, a discrepância de tratamento e julgamento de que foi alvo, por parte de colegas, amigos e médicos, umas vezes cruel, outras bondoso.
O aborto clandestino a que se teve de submeter fez-me sentir repulsa e medo. Foram vários os momentos em que a descrição era tão gráfica que tive de fazer uma pausa na leitura e ir apanhar ar. Pensar que tantas foram as mulheres que passaram por esta experiência e muitas vezes não saíram dela vivas emociona-me e enraivece-me.
“(…) as coisas aconteceram-me para que eu me aperceba delas. E o verdadeiro objetivo da minha vida é, provavelmente, apenas este: que o meu corpo, as minhas sensações e os meus pensamentos se transformem em escrita, isto é, em qualquer coisa de inteligível e comum – a minha existência completamente dissolvida na cabeça e vida dos outros”.
Porque é que Annie Ernaux recebeu um Nobel da Literatura em 2022?
“For the courage and clinical acuity with which she uncovers the roots, estrangements and collective restraints of personal memory”.
Porque é que o trabalho desta mulher é tão importante e inspirador? Creio que pela maneira como disseca os difíceis acontecimentos e pensamentos do seu passado com uma precisão quase clínica, no contexto de uma cultura francesa em que não existia liberdade para uma mulher se expor desta maneira. Fá-lo de forma a ligar a sua memória individual à experiência coletiva, particularmente à das mulheres e da classe trabalhadora.
Passamos tanto tempo das nossas vidas a pensar no passado sem muitas vezes conseguirmos descortinar e transpor em palavras o que nos foi acontecendo, que fazê-lo, e tão bem, é de um talento inegável. Revisitar certos momentos pelos quais passámos faz-nos reorganizar as ideias e pouco a pouco, o que sentimos transforma-se e a história completa-se.